31 de março de 2016

Carta 1 - Herança de Super Herói

Minha querida,

se enfim esta carta está em suas mãos é porque algo aconteceu. E se necessariamente esta carta foi escrita e hoje está em suas mãos é porque me conforta seu sentimento de paz com a situação. Algo em seus olhos sempre brilharam diante do fantástico, curioso, misterioso, e posso assegurar-lhe que isto é a máxima desses substantivos, querida, e muito feliz fico em saber que experimentei o que tanto lhe aguçaria a atenção, porque, veja, sempre me encantei em como você nunca escondeu o que lhe interessava - assim mesmo, no antagonismo de "sempre" e "nunca" porque não houve falha na minha ação e nem na sua.
Você e eu, querida, era a magia das premissas verdadeiras. Eram seus olhos me procurando no campo, perguntando, perguntando e levantando hipóteses absurdas e criativas para as razões do mundo. Éramos super heróis de gerações separadas. Você, pequena e aparentemente frágil, chegou para balançar as estruturas masculinas de gerações de homens. Eu, bem... eu nasci muitos anos antes para preparar seu pai na jornada futura de criá-la.
Ele fez um ótimo trabalho - sua mãe e ele, claro, afinal, quais olhos castanhos brilham em você senão os dela, em interesse pelo cuidado do outro? Não nego que a imaginava de olhos azuis, a brilharem e saltitarem pelos campos, pelos corredores, pelas salas, mas vieram castanhos, muito castanhos e sóbrios e atentos para o mundo.
Querida, não houve nada entre a gente. Não há motivos para garantir a existência do que não se explica, mas isso não implica o contrário. Nós éramos nós e isso, com o tempo, me bastava.
Pois bem, minha querida, é exatamente pelo nosso "nós" que pensei muito pouco sobre o que deixaria sob seus cuidados. Foi muito fácil decidir - sempre foi. Escrevi e reescrevi essa carta muitas vezes ao longos desses 25 anos, sempre sabendo exatamente o que destinar a você quando chegasse a hora. A cada descoberta do seu novo interesse, queria proporcionar a melhor experiência e surpresa... porque bem sei eu que você é adoradora de surpresas. Quando pequena, deixaria aquele quadro caótico do meu escritório para você de tanto fascínio que ele te proporcionava. Você se lembra de quando se sentava na minha cadeira, sem altura para atingir os pés no chão ou para ter visibilidade na minha mesa, e falava sobre todos os sentimentos e histórias que vinham em sua mente e coração? Explosão caótica de imaginação, denominei.
E experimentei tal por todos os anos de sua existência comigo.
Hoje deixo outras coisas. O quadro não se encontra mais lá, mas outras coisas nos encontraram. Atingiram-nos. Ao seu encargo, pois, estão os livros. Todos. Exatamente todos os meus livros - incluindo meus diários e cartas que guardei com tanto carinho. As tantas cartas que recebi de sua avó e, alegre-se, as cartas que escrevi a ela (sim, querida, as recuperei após aquela incisiva sessão de perguntas sobre como fora nosso namoro. Você acendeu sentimentos de um jovem de 16 anos em um homem de 67 e eu precisava daquelas cartas).
Esse é meu pequeno tesouro particular e sei que em você a mesma denominação é feita.
Entrego, também, sem medo de qual destino você queira dar depois, as minhas fotos. Mas as fotos são papéis representativos do que verdadeiramente dou a você.
Querida, unicamente a você entrego as minhas lembranças, em forma de fotos, livros, escritas. Confidencio a você todas as lembranças da vida desse homem de 85 anos, e sei como você se sente agora: o fantástico, o curioso e o misterioso.
Agradeço por encontrar na minha partida a paz que sinto.

Do Seu,
Vô.

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