29 de agosto de 2016

Da Série "Como unificar todos os acontecimentos em uma única metáfora"

De tudo o que poderia nos acometer, nunca de fato idealizei o furacão girando conosco no centro. Parece a calmaria e podemos até sobreviver, mas ali do lado, nesse cone gigante e violento, o vento gira com velocidade e força absurdas e capazes de nos estraçalhar. Se a gente levantar e sair do meio do furacão, podemos - e vamos - morrer. O impasse de uma situação fantástica e incrédula o suficiente para rimos histericamente, consumidos pelo desespero, pela prisão, pela morte eminente.
Daqui eu só consigo visualizar duas formas de resolução - e, desculpe, mas nenhuma será indolor. A primeira é o fato de que esse furacão vai andar. Ele vai ter seu percurso feito e não seremos nós quem vamos detê-lo. Teremos, sempre, de acompanhar o ritmo dele e torcer para que esteja a favor do nosso, caso contrário, sentiremos a força de algo que era invisível para nós até então: o ar.
A segunda é que podemos morrer aqui mesmo, no meio. Acho que pode ser por inanição, por desidratação ou até mesmo asfixiamento. Invariavelmente, sofreremos. Invariavelmente, sentiremos.
O percurso natural é o que mais me preocupa e ao mesmo tempo me traz a serenidade porque, veja, não há como ser alterado. Não importa nossos esforços, nossas rezas, nossos medos; vai acontecer independente de nós e isso me conforta porque me tira a responsabilidade e a culpa do que acontecer. Daqui umas horas, daqui um mês, que seja, simplesmente acontecerá e nós podemos estar aqui ou ter encontrado um jeito de sair. Podemos, até, ter sobrevivido e o vento acabado, a tempestade se esmiuçado e a calmaria restabelecida.
Seremos, de alguma maneira, sobreviventes ou história.


3 de agosto de 2016

oasis de um velório

Tanta gente apertando minha mão e doando abraços em nome de um sentimento que eu não entendo ou reconheço em mim. As inúmeras coroas de homenagens disputando espaço no cômodo, pessoas querendo se aproximar de mim e da minha família, proliferarem suas palavras de respeito ou hipocrisia acerca do patriarca. Levanta daí, grito em silêncio para o corpo de meu avô. Levanta daí e acaba com essa palhaçada. Minha mão já está vermelha, meus dedos dormentes e meus olhos secos. Se incomoda? Sim, sinto-me incomodado diante do fato nítido de que todos choram - menos eu. Que coisa. Chorei muito quando pequeno imaginando esse dia e reconheço a dor no peito, tão maior e mais aguda do que apenas a ideia de. Minha mãe, de olhos inchados, boca inchada, nariz escorrendo, lenços de papéis na mão, me diz para sair. Esse cheiro de flor está dando dor de cabeça em todo mundo e eu sigo o pequeno fluxo de gente para fora do velório. Seis mortos enfileirados em salas. Rio com a perspectiva. Meto a mão no bolso da calça procurando a carteira. Um suco, uma água, uma pinga. Qualquer coisa que faça minha mente perturbada momentaneamente esquecer um pouco do que está acontecendo nas minhas costas. Quero correr. Mas não vou. Incrível que de todas as pessoas ali - e não sou poucas; meia cidade e outras cidades, parentes que não me são familiares - é você quem está apoiada na minha mente. Que coincidência seria poder, por milagre desse mundo de acasos, te atrair para cá. Mesmo que faça anos que não nos falamos, mesmo que faça anos que não entro furtivamente pela sua janela à noite. Anos de uma adolescência estranha. Só que ao te ver ali, braços cruzados, Ray Ban preto e quadrado, o nó no cabelo, roendo o canto da unha, a ideia da dor começa a se materializar. Você desvia a atenção do dedo para mim e quero acreditar que ostenta o olhar para mim, transmitindo a sua experiência nesse assunto e situação tão desconfortável que parece lascar minha pele com navalha afiada. Como navalha afiada. Ou sem corte? Definitivamente sem corte. Dói mais quando percebo essa comparação. Como. Sou "como": uma comparação diante a tanta dor. É que saudade dói, não é? É que também parece que você tem o antídoto e eu não percebo quando estou abraçado e chorando sobre o seu ombro - e, ainda, não percebo que você está sim me abraçando também. Então percebo que você foi atraída para cá na conspiração da minha vontade por um milagre. A peça não pertencente a esse quebra-cabeça. Ninguém ali dentro pode me proporcionar o conforto porque todos estão inseridos no mesmo contexto e em casa também só vai ter dor e não posso abraçar minha mãe porque sinceramente não quero começar a imaginar e desenhar a ideia de perder meu pai ou ela e não posso abraçar meus irmãos porque nossas dores não são comparáveis e saudade dói. "Não dói" você me diz. "O que dói é a perda mesmo". E é você, de novo, dizendo que o que eu tô sentindo não é válido ou errado. Você pega um graveto e quebra ele e entrega nas minhas mãos. "É assim que é: a ruptura do que a gente é acostumado, mas, depois, se acostuma com o novo. Antes era um graveto e agora são dois". Te mando praputaqueopariu. Não desmoralize meu sentimento, que não sei dar nome, não sei como senti-lo, mas não desfaça esse momento. Você me abraça e conta um segredo: todo sentimento, mesmo que misturado e mesmo que as palavras não correspondam a ele direito, é válido e jamais pode ser desmoralizado.Minha dor é só minha e só faz sentido para mim exatamente porque está sob o meu contexto e ninguém nesse mundo tem o meu contexto, exatamente igual ao meu. Você segura meu rosto entre suas mãos de dedos compridos e unhas mordiscadas e me sorri. Entre tantos, você é quem veio aqui. "Eu tinha que vir, porque eu sabia que você ia precisar de um abraço de fora". E vai embora. E vai embora me deixando aqui entendendo algumas coisas - raciocinando sobre algumas coisas, não necessariamente entendendo e, que droga, já estou pensando como você. Será que se eu escalar de novo sua varanda a gente consegue ficar? E exatamente porque eu estou pensando como você nesse momento que dou risada sozinho. Volto para o cômodo de cheiros nauseantes e coroas com frases sem sentimento imaginando qual será o próximo evento milagroso e conspiratório em que nos daremos às caras novamente.